Como é do seu estilo, Donald Trump escolheu o caminho da liderança hegemônica para “tornar a América grande novamente”
Por Charles Machado – SC
Quais caminhos um país pode seguir para tentar recuperar sua liderança mundial quando percebe sintomas de declínio de sua hegemonia, com concorrentes ao posto antes impensáveis? Lembro que o economista e historiador da ordem econômica e financeira internacional Charles P. Kindleberger vaticinava que, quando um império começa a perceber que os custos de manter a ordem mundial são maiores do que os benefícios que ele traz, ele acaba enfrentando um dilema: escolher entre uma “liderança cooperativa” com outras potências, ou uma “liderança hegemônica”, forçando-as a ajudá-lo a recuperar seu poder.
O declínio dos EUA é evidente, basta você parar de ler esse artigo e procurar na sua casa ou no seu trabalho um produto com o selo “Made in USA”.
E logo, como é do seu estilo, Donald Trump escolheu o caminho da liderança hegemônica para “tornar a América grande novamente”. O instrumento usado para torcer o braço de seus parceiros comerciais são as tarifas.
Porém que consequências terá esta guerra tarifária? Isso levará a economia norte-americana (e a mundial) a uma recessão? Isso trará uma nova era de protecionismo? As respostas são as mais diversas, porém a única coisa certa é que a política tarifária errática de Trump só pode levar ao caos econômico.
À medida que vemos como as coisas evoluem, as tarifas de Trump levantam duas questões de interesse. A primeira é por que você escolheu a guerra tarifária e que lógica econômica está por trás disso, se houver alguma. A segunda é o impacto que essa guerra comercial pode ter na estabilidade da ordem geoeconômica e geopolítica mundial. Veremos uma transição da ordem hegemônica norte-americana para uma nova ordem cooperativa com outras potências? No seu caso, será uma transição pacífica ou traumática?
Como destaca o economista da Universidade de Barcelona Antón Costas “A liderança baseia-se, acima de tudo, na disposição de assumir os custos de garantir a existência de serviços públicos globais: a estabilidade econômica, política e militar global. Os Estados Unidos obtiveram sua liderança substituindo o Império Britânico a partir da Primeira Guerra Mundial.
A transição dessa liderança foi feita com conotações dramáticas, como bem lembra o professor em recente artigo publicado no caderno de negócios do Jornal El Pais, recordando que no final da Segunda Guerra Mundial, na conferência de Bretton Woods de 1944, os Estados Unidos projetaram uma nova ordem econômica mundial, com o dólar como moeda de reserva mundial. Um sistema que era chato para os especuladores financeiros, mas muito eficaz para a criação de riqueza, emprego e comércio.
Muro de Berlim e a globalização
Durante os seguintes “trinta gloriosos” anos, os Estados Unidos consolidaram seu poder industrial. O auge de sua liderança provavelmente ocorreu no início da década de 1990, sob a presidência de George H. W. Bush, adicionando uma dimensão moral ao impulsionar o regime de direitos humanos em todo o mundo e intervenções humanitárias.
As coisas mudaram inesperadamente. A queda do Muro de Berlim e a dissolução do império soviético criaram a miragem do triunfo definitivo do capitalismo anglo-saxão. A confiança nos mercados livres, a desregulamentação (especialmente financeira e trabalhista) e a glorificação da globalização se transformaram nos mantras da política. As importações começaram a substituir a produção doméstica.
O déficit comercial foi agravado pelo fato de que a compra de dólares como moeda de reserva pelo resto do mundo causou a supervalorização do dólar, tornando as exportações mais caras e as importações mais baratas. Foi o início do declínio industrial e da perda de bons empregos de classe média em muitas comunidades do país.
Ao declínio industrial se somou uma mudança de cultura econômica que trouxe uma perda de vigor moral como consequência da predominância das atividades financeiras e de sua cultura especulativa. Surgem também os novos barões da tecnologia, e as suas big techs, que realizam um misto de admiração e de temor reverencial, pela intervenção direta e diária nas nossas vidas.
Em tempos de polarizações, quando fazer ponte entre os lados é um desafio ainda maior, instaurou-se uma fratura social, cultural e moral dividem hoje a população americana em dois lados políticos praticamente iguais, e que se repete também em outras terras, como no Brasil, onde a visão da moral é de torcedor e não de construção da cidadania.
Com o pano de fundo do declínio econômico e da fratura social e cultural, em 2016 Donald Trump soube cheirar o sangue e a dor de uma classe média trabalhadora politicamente abandonada e culturalmente desprezada pelas elites políticas e econômicas.
Nesse cenário, ele emergiu como o mensageiro da perda de vigor econômico e moral do país. O slogan de sua campanha foi um sucesso de marketing político: “Tornar a América grande novamente”.
A estratégia escolhida por Trump para tornar a América grande novamente com o uso de tarifas parece extravagante e aristocrática, própria de um Rei Sol que humilha ou recompensa seus súditos. Mas tem precedentes políticos. O regime nazista foi usado durante a década de 1930 para expandir seu poder para o sul e sudeste da Europa. Posteriormente, a União Soviética com a Europa Oriental também o fez.
Essa estratégia pode ser bem compreendida no livro de Albert Hisrschman, “O poder nacional e a estrutura do comércio exterior”.
Hisrschman se baseou na teoria clássica do comércio internacional, mas a complicou sutilmente. Onde a teoria clássica vê “ganhos comerciais” que são “mutuamente benéficos” para ambos os países, Hisrschman introduziu a ideia de que, na realidade, esses ganhos são assimétricos: beneficiam mais o país grande do que o pequeno, o rico do que o pobre, o industrial do que o agrário.
De acordo com sua análise, o país hegemônico aproveita os elementos e desequilíbrios de poder que estão potencialmente inscritos nas relações comerciais aparentemente “inofensivas”. Essa assimetria ocorre quando o volume de comércio entre um país A e os Estados Unidos é muito mais importante para A do que para os Estados Unidos.
Os EUA e a China
De acordo com a máxima “fortuna est servitus” (“a fortuna é escrava”), o lucro que os países obtêm por negociar com os Estados Unidos de forma assimétrica pode significar uma alta dependência para o país exportador e uma grande capacidade de dominação para os Estados Unidos. Quando as características estruturais das relações econômicas internacionais são dessa natureza, “tornam a busca pelo poder uma tarefa relativamente fácil” para o país rico.
Para os que defendem a lógica de Trump, como Stephen Miran, presidente do Conselho de Assessores Econômicos do presidente, que estabelece uma ligação entre o declínio da produção manufatureira, a fraqueza do emprego industrial, o déficit comercial crônico e o papel do dólar como moeda de reserva.
Para atingir o objetivo de Trump de proteger a manufatura nacional enquanto mantém o dólar como moeda de reserva global, mas desvalorizando-o, a opção que Miran propõe é usar tarifas.
Como essa estratégia funcionaria? Primeiro, as tarifas são levantadas de forma unilateral e errática, assim como Trump está fazendo. Em seguida, pede-se aos países que não reajam de forma “histérica” e negociem, concedendo prorrogações para isso, como acabou de fazer com a prorrogação de 90 dias, exceto para a China.
Em troca de que os países aceitem o prejuízo que sofrerão ao encarecer suas exportações com as novas tarifas, os Estados Unidos lhes oferecem seu guarda-chuva de defesa militar.
O resultado dessa estratégia é que as importações diminuem e as exportações aumentam, o déficit comercial crônico é corrigido, a produção nacional aumenta e o emprego industrial é criado. Isso permite que o dólar se desvalorize, mantendo, no entanto, seu papel como moeda de reserva global. O resultado final é “Make América Great Again”.
Será que vai funcionar?
Lembro por último que nos EUA, os serviços criam mais de 80% de todos os empregos não agrícolas, e que a manufatura é responsável por menos de 10%. As exportações peculiares dos EUA para o mundo são softwares e serviços de software, entretenimento, serviços financeiros e outras coisas intangíveis, e nessa produção os EUA não têm déficit comercial. Ao contrário, registram superávits em relação ao restante do mundo.
Por que essa transformação? Porque à medida que ficam mais ricas e mais escolarizadas, as pessoas gastam mais em serviços, não em bens. Em 1960, os consumidores dos EUA destinavam mais de 50% de seus gastos de consumo a mercadorias. Em 2010, destinaram apenas 33%.
E o dinheiro que alimenta as empresas não decorre de bens, mas de serviços. Um tênis pode custar US$ 25 ou US$ 30 para ser fabricado; seu valor vem do design, do marketing e das estratégias de vendas que permitem comercializá-lo por US$ 100. Em que parte deste produto você prefere que trabalhadores do seu país estejam envolvidos?
Os empregos na manufatura dos EUA representavam cerca de 25% em 1973. Hoje, correspondem a cerca de 8%. Faz sentido ?
Artigo publicado originalmente no site Misto Brasil